28 June 2006

O pregador predador * The predator preacher

O actor britânico que deixou na nossa memória papéis como o Quasimodo de O Corcunda de Notre Dame (1939) descreve a sua única experiência de realização como "a nightmarish sort of Mother Goose tale". Após o fracasso comercial dessa experiência intitulada The Night of the Hunter (1955), Charles Laughton não se atreveu a realizar qualquer outro filme, o que é lamentável, pois a posteridade não demonstra concordância com a leitura negativa feita na época sobre esta película.
Robert Mitchum é Harry Powell, um pregador psicótico que se casa com a viúva Willa Harper (Shelley Winters) depois de saber pelo defunto marido, o seu antigo companheiro de cela, Ben Harper (papel interpretado por Peter Graves, o Jim de Mission: Impossible), que esta tem consigo uma pequena fortuna resultante do assalto a um banco. Quem afinal tem o dinheiro guardado é John, o filho de Willa, e Powell, depois de assassinar friamente Willa (numa cena cuja fotografia nos remete para o expressionismo alemão de O Gabinete do Dr. Caligari) inicia uma perseguição a John e sua irmã que culminará no confronto com Rachel Cooper (Lillian Gish), a figura matriarcal que irá fazer frente ao perverso pregador.
Nesta leitura simplista do filme como fábula/alegoria religiosa, podemos ver Harry Powell como a incarnação do mal em permanente luta com o bem (luta essa evidenciada nos seus sermões) e John Harper como o indivíduo portador do pesado fardo do pecado - o dinheiro do assalto - que faz a sua caminhada redentora em direcção à libertação desse peso que afinal o impede de reencontrar a sua infância perdida.

Tal como a descrição acima citada de Laughton indica, o filme não pretende ter um cariz realista, e sente-se, de facto o ambiente de sonho, aliás, pesadelo, que percorre os 93 minutos de fotografia a preto e branco. Mitchum incarna na perfeição - numa das melhores interpretações da sua carreira - a figura ambígua, inquietante e ameaçadora da personagem, ensaiando neste controverso papel aquela que viria a ser a sua famosa imagem de marca, o semblante duro e sério que tantas vezes apreciámos nos westerns e films noir (e não só) que protagonizou.

O filme contém muitos elementos teatrais e é percorrido por uma visão de opostos que realçam um maniqueismo latente: fortes contrastes de luz e sombra, imagens religiosas que retratam resistência e inocência mas também o mal intrínseco ao homem e, finalmente, as palavras love e hate que Powell tem tatuadas nos dedos das mãos direita e esquerda, respectivamente. Também de extremos costumam ser as reacções a esta obra única (literalmente!) de Laughton, esta fábula-pesadelo que não deixa ninguém indiferente. Ainda bem, pois frequentemente essa é uma das qualidades que nos indicam que estamos perante uma obra genial.
The British actor who played memorable parts, such as The Hunchback of Notre Dame’s Quasimodo (1939), describes his single directing experience as "a nightmarish sort of Mother Goose tale". After the commercial flop of this experience entitled The Night of the Hunter (1955), Charles Laughton didn’t dare direct any other film, which is regretful, since posterity doesn’t seem to agree with the negative view on this moving picture.

Robert Mitchum is Harry Powell, a psychotic preacher who marries widow Willa Harper (Shelley Winters) after her late husband, his former cellmate Ben Harper (played by Peter Graves, Mission: Impossible’s Jim), has told him that she keeps a small fortune from a bank robbery. As a matter of fact, the one who keeps the money is John, Willa’s son, and Powell, after coldly murdering Willa (in a scene with a photography that reminds us of The Cabinet of Dr. Caligari’s German expressionism) starts a pursuit of John and his sister which will end with the confrontation with Rachel Cooper (Lillian Gish), the matriarchal figure who will face the perverted preacher.

In the simplistic regard of this film as a tale/religious allegory, one can see Harry Powell as the incarnation of evil in constant fight with good (this fight is attested in his sermons) and John Harper as the bearer of the heavy burden of sin – the money from the robbery – who walks his redeeming path towards the discharge of that load which, after all, prevents him from reuniting with his lost childhood.

Just like Laughton’s quotation above indicates, this film doesn’t mean to have a realistic quality, and one actually feels the dreamlike, or nightmare-like, ambience, through the 93 minutes of black and white photography. Mitchum perfectly incarnates – in one of the best performances in his career – the ambiguous, disturbing, threatening figure of the character, rehearsing in this controversial role what would be his famous trademark, the hard and stern (in)expression that so many times we’ve enjoyed in the westerns and films noir (and other genres) where he starred.

The film contains many theatrical elements and is covered with a vision of opposites that emphasize an underlying Manichaeism: strong contrasts of light and shadows, religious images that portray resistance and innocence but also the evil inherent to man and, finally, the words love and hate that Powell has tattooed on the fingers of his right and left hand, respectively. The reactions to Laughton’s unique (literally!) work, to this nightmare-tale that leaves no-one indifferent, are usually extreme, as well. I’m pleased with that, for that is a frequent quality in an exceptional work.

24 June 2006

Viagem ao Inferno via Whitechapel * A trip to Hell via Whitechapel


Alan Moore assumiu-se como um pioneiro do movimento iniciado nos anos 80 que facultou a elevação do estatuto da 9ª arte para lá das "histórias de quadradinhos" para crianças (e adultos pouco letrados). Depois de um esboço com V for Vendetta (recentemente adaptado para o cinema), conseguiu-o com Watchmen, uma graphic novel que tanto para leitores como para a crítica revolucionou o mundo dos super-heróis e transformou a experiência narrativa da banda desenhada em algo muito próximo da profundidade narrativa do romance, o que juntamente com a arte de Dave Gibbons, o artista que colocou a história de Moore em imagens, deu origem à única banda desenhada a receber um Hugo Award e a figurar entre os 100 melhores romances (de língua inglesa) da Time Magazine.

Depois de Watchmen (e inúmeras outras obras), Alan Moore voltou a surpreender com From Hell. Quando se sugere que o tema central de From Hell é Jack o Estripador, Moore corrige dizendo que os crimes de Whitechapel são apenas um pretexto para um retrato profundo da época vitoriana e do advento do século XX. Tal como Watchmen, e indo até um pouco mais longe, From Hell é mais que uma simples graphic novel, entrando, nalguns aspectos, no campo do romance e inclusivamente do ensaio – especulativo mas fundamentado nas poucas fontes existentes, também elas carecendo de rigor histórico absoluto. É, acima de tudo, uma obra grandiosa, com as suas mais de 500 pranchas mais 66 páginas de anexos, 42 das quais com notas que, acima de tudo, fundamentam e explicam a teorização sobre o tema através de consulta bibliográfica e anotações de cariz histórico.

Trata-se, portanto, de ficção pontuada por fundamentos históricos que servem para dar coerência narrativa e verosimilhança (pergunto-me... será que Dan Brown já leu From Hell?...). Vemos, assim, os crimes hediondos de Jack o Estripador como uma trama real encabeçada pela própria Rainha Vitória que se vê forçada a tomar medidas desesperadas para salvar a honra da Coroa Britânica, chamando o cirurgião maçónico Sir William Gull para resolver o caso de uma situação de chantagem que tem por base o facto de o Príncipe Albert Victor ter engravidado e casado com Annie Crook, uma lojista da classe trabalhadora. Por muito apetecível e sedutora que esta versão dos acontecimentos nos pareça, sabemos que, e apesar do confronto com fontes documentais – por vezes escassas e contraditórias – estamos no terreno pantanoso da suposição, o que no entanto não torna a obra menos excitante.

Eddie Campbell acompanha de forma competente o argumento de Moore com um desenho de traço fino com silhuetas e sombras extraídas de abundantes traços paralelos ou cruzados, ou mesmo muitas vezes com um fundo totalmente negro – obrigatoriamente com arte-final a preto e branco para mais facilmente criar o ambiente nocturno e sombrio das ruas londrinas do século XIX.

From Hell são 16 capítulos (mais anotações e anexos) que facilmente prendem o leitor, quer nos momentos mais gráficos, com várias páginas seguidas de pranchas silenciosas, muitas vezes com imagens fortes cujo impacto nem o preto e branco consegue atenuar, quer nos muitos momentos com características mais de romance que de banda desenhada, em que, apesar de nada de novo surgir nas imagens, o texto é crucial para o desenvolvimento da profundidade das personagens. Numa história em que nada são certezas ao longo do desenrolar da acção, a única certeza que fica é a de que Alan Moore continuará certamente a surpreender-nos com obras-primas que fazem jus à sua crescente aceitação - no meio dos comic books e fora dele.

Alan Moore turned out to be a pioneer of the movement started in the 1980s which allowed the rise of the 9th art reputation beyond the "comic book for children" (and illiterate adults). After a draft with V for Vendetta (recently adapted for cinema), he made it with Watchmen, a graphic novel that - both for readers and critics - revolutionised the world of super-heroes and transformed the narrative experience of comic books into something very close to the narrative depth of the novel, which, together with the artwork of Dave Gibbons, the artist that put Moore’s story in pictures, gave birth to the only comic book that has received a Hugo Award and is positioned among Time Magazine’s 100 best (English language) novels.

After Watchmen (and a myriad of other works), Alan Moore surprised once more with From Hell. When it is suggested that From Hell’s main subject is Jack the Ripper,
Moore corrects this assumption by saying that the Whitechapel crimes are only a pretext for an insightful portrait of the Victorian Age and the advent of the 20th century. Just like Watchmen, and going even a bit further, From Hell is more than a mere graphic novel, exploring, in some aspects, the field of the novel and inclusively the essay – speculative but grounded in the few existing sources, these latter also lacking absolute historical accuracy. It is, most of all, an immense work, with its more than 500 boards plus 66 pages of annexes including 42 with annotations that, above all, ground and explain the theorisation on the subject through bibliographical research and historical annotations.

It is, therefore, fiction punctuated with historical groundings that are used to provide narrative coherence and likelihood (I wonder… has Dan Brown already read From Hell?...). Thus we see Jack the Ripper’s heinous crimes as a royal plot headed by Queen Vic herself who is forced to take desperate measures to safeguard the honour of the British Crown, calling the mason surgeon Sir William Gull to solve the case of a blackmail situation based on the fact that Prince Albert Victor had knocked up and married Annie Crook, a working-class shop attendant. Though this version of events sounds amusing and appealing, we know that (and despite the confrontation with documental sources – sometimes scarce and contradictory) we are in the muddy lands of supposition, which nevertheless doesn’t make it less exciting.


Eddie Campbell proficiently follows Moore’s script with an artwork made up of thin outlines with silhouettes and shadows obtained from copious parallel or crossed lines, or even, quite often, with a totally black background – forcibly with a black and white final art to recreate more easily the nocturnal and gloomy ambience of the 19th century London streets.

From Hell is a set of 16 chapters (plus annotations and annexes) that easily takes hold of the reader, both in the more graphic moments, with several pages in a row with silent boards, often with strong images with an impact that can’t be lightened by the black and white, and in the numerous moments which resemble more the novel than the comic book, in which, although nothing new shows up in the images, the text is critical for the development of the characters’ depth. In a story where nothing is certain throughout the action, the only certainty that remains is that Alan Moore will surely keep surprising us with master works that confirm his increasing acceptance – both in the comics medium and outside it.
photo credits: From Hell © Alan Moore and Eddie Campbell 1999

22 June 2006

Alice vezes dois * Alice times two

O Rev. Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), professor de Matemática em Oxford, ficou para a história não como o eminente matemático que publicou diversos e relevantes tratados (Euclid and his Modern Rivals, de 1879 é o mais conhecido), mas como Lewis Carroll, o autor de Alice's Adventures in Wonderland (1865) e Through the Looking-Glass (1872), obras declaradamente infantis mas com uma série de características que as tornam apelativas e bastante interessantes para leitores mais amadurecidos. As aventuras de Alice foram originalmente contadas por Carroll à pequena Alice Liddell e às suas duas irmãs num dia de Verão de 1862, durante um passeio de barco, e no Natal desse ano Carroll ofereceu o livro a Alice com a dedicatória A Christmas Gift to a Dear Child in Memory of a Summer Day. Só 3 anos mais tarde seria publicado como Alice's Adventures in Wonderland, com as sobejamente conhecidas ilustrações de John Tenniel (a primeira versão tinha sido ilustrada pelo próprio Carroll).
Das inúmeras edições de Alice, destaco duas que sobressaem por motivos distintos:
A primeira é The Annotated Alice, editada por Martin Gardner (1ª edição em 1960). Gardner é um céptico e um estudioso prominente em diversas áreas, incluindo a matemática e a filosofia, que nos proporciona uma leitura rodeada de glosas elucidativas das private jokes de Dodgson, das alusões aos costumes vitorianos - que hoje teríamos dificuldade em contextualizar - e das questões matemáticas e simbólicas por detrás das referências a números que abundam na obra (Dodgson era especialista em charadas matemáticas). Após 46 anos, e revigorado por uma nova edição em 1999 (The Annotated Alice: The Definitive Edition, que reúne a edição de 1960 com a continuação More Annotated Alice, de 1990), Gardner mantém o estatuto de um dos grandes especialistas em Carroll, apesar da recente revisão da vida de Carroll proposta por Karoline Leach que refuta o "mito Carroll" que a crítica - Gardner inclusive - tem construído ao longo do século XX.

A segunda, numa perspectiva mais lúdica, é a edição de Alice's Adventures in Wonderland ilustrada por Anthony Browne. Trata-se de uma interessante alternativa às ilustrações de Tenniel, cujo pendor surrealista se encaixa perfeitamente no ambiente onírico da obra. Esta edição ganhou o Emil/Kurt Maschler Award e garantidamente encantará as crianças com as suas cores fortes e o seu humor, mas também adultos que apreciem ilustração de inegável criatividade artística. A obra vive numa comunicação constante com as imagens e, aliás, citando a protagonista, "para que serve um livro," pensou Alice, "sem imagens ou conversas?"

Rev. Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), Mathematics lecturer in Oxford, became renowned not as the prominent mathematician that published several relevant treatises (Euclid and his Modern Rivals (1879) is the most well-known), but as Lewis Carroll, the author of Alice's Adventures in Wonderland (1865) and Through the Looking-Glass (1872), works openly made for children but with a series of qualities that make them appealing and very interesting for more advanced readers. The adventures of Alice were originally told by Carroll to the little Alice Liddell and her two sisters in a summer day in 1862, during a boat ride, and at that year’s Christmas, Carroll offered the book to Alice with the dedication A Christmas Gift to a Dear Child in Memory of a Summer Day. Only 3 years later would it be published as Alice's Adventures in Wonderland, with the hugely famous illustrations by John Tenniel (the first version had been illustrated by Carroll himself).
From the numerous editions of Alice, I draw attention to two that stand out for different reasons:
The first one is The Annotated Alice, edited by Martin Gardner (1st edition in 1960). Gardner is a skeptic and a prominent scholar in several areas, including mathematics and philosophy, who gives us a reading surrounded with glosses enlightening Dodgson’s private jokes, the references to Victorian habits – which would be difficult for us to contextualise today – and the mathematical and symbolical issues behind the abundant references to numbers in the book (Dodgson was a specialist in mathematical charades). 46 years later, and renewed by a re-edition in 1999 (The Annotated Alice: The Definitive Edition, which gathers the 1960 edition with the sequel More Annotated Alice, from 1990), Gardner still remains one of the greatest Carroll specialists, despite the recent revision of Carroll’s life suggested by Karoline Leach, who refutes the "Carroll myth" that the scholars – including Gardner – have been building throughout the 20th century.
The second one, in a more playful perspective, is the edition of Alice's Adventures in Wonderland illustrated by Anthony Browne. It’s an interesting alternative to Tenniel’s illustrations, with a surrealistic character that perfectly fits in the dreamlike ambience of the book. This edition has won the Emil/Kurt Maschler Award and will surely delight children with its strong colours and humour, but also grown-ups who enjoy illustration with undeniable artistic creativity. The work lives in constant communication with the images and, in fact, as the main character says, ‘what is the use of a book,’ thought Alice, ‘without pictures or conversations?’

20 June 2006

Explorando os sons de Marte * Exploring the sounds from Mars


Juan Garcia Esquivel (1918-2002) é considerado por muitos o rei da Space Age Pop. E provavelmente com justiça, pois falamos de um talentoso compositor, arranjista, maestro, performer... enfim, um prodígio nato no mundo do espectáculo e, em particular, na criação de sonoridades que ajudaram a definir este rumo tão próprio que algumas big bands tomaram por volta da década de 60.
Com a Space Age - e com Esquivel em particular - afastamo-nos da imagem e dos swings nostálgicos das big bands do tempo da II Guerra Mundial, como a do eminente Glenn Miller, para entrarmos num elenco orquestral que, para além do piano e dos sopros incorpora sons ondulantes de slide guitar, percussões primitivas, guitarras mariachi ou até instrumentos orientais, entre outros mais bizarros, como a buzzimba. Além disso, e assumindo ainda mais a ruptura com as big bands tradicionais, Esquivel aventura-se na integração de intrumentos electrónicos, como o Theremin (quem não se lembra dos sons fantasmagóricos em Spellbound/A Casa Encantada de Hitchcock?) ou o Ondioline, um teclado electrónico com sons fora do vulgar. A tudo isto juntam-se os arranjos com grandes e por vezes súbitas oscilações de volume, a separação estereofónica dos instrumentos - por vezes com "danças" entre o canal esquerdo e o direito - e as vocalizações quase sem palavras, que ele próprio inventou (os "zu-zu-zu" e "pow! pow!" de Esquivel são tão ou mais célebres do que os "pa-pa-pa" de Hugo Montenegro),
Todos estes ingredientes mostram o génio de um artista que dignifica o conceito mais genérico de lounge music (sob o qual cabem os sub-géneros de Space Age Pop, Exotica, etc.), afastando este género das definições mais empobrecedoras de música ambiente ou de elevador, e a música de Esquivel pertence, de facto, a uma dimensão mais espacial. Aliás, apesar da origem Mexicana do compositor, não é negada a possibilidade de sangue marciano a correr nas suas veias. Quando uma noite, após uma actuação em São Francisco, o proprietário de um clube lhe perguntou de onde ele era, Esquivel respondeu com un sorriso irónico "Algumas pessoas dizem que sou de Marte."
Pode ouvir aqui 3 temas do álbum Other Worlds Other Sounds.

Juan Garcia Esquivel (1918-2002) is considered by many as the king of Space Age Pop. And they’re probably right, since we’re talking about a gifted composer, arranger, conductor, performer... in one word, a natural-born prodigy in the show industry and, particularly, in the creation of sounds that helped define this unique route that a number of big bands took around the sixties.
With Space Age – and with Esquivel in particular – we move away from the image and the nostalgic swings of World War II big bands, like that of the distinguished Glenn Miller, to enter into an orchestral set that, besides the piano and the brass section, includes waving sounds of slide guitar, primitive percussions, mariachi guitars or even oriental instruments, among more bizarre ones, like the buzzimba. Moreover, and proceeding even further with the rupture with the traditional big bands, Esquivel ventures into the add-on of electronic instruments, like the Theremin (who doesn’t remember the spooky sounds in Hitchcock’s Spellbound?) or the Ondioline, an electronic keyboard with unusual sounds. In addition, there are the arrangements with great and sometimes sudden volume oscillations, the stereophonic separation of the instruments – sometimes with "dances" between the left and right channels – and the vocal arrangements with almost no words, which are his own invention (Esquivel’s "zu-zu-zu" and "pow! pow!" are as famous as – or more famous than - Hugo Montenegro’s “pa-pa-pa”).
All these ingredients show the genius of an artist that dignifies the broader concept of lounge music (under which the subgenres of Space Age Pop, Exotica, etc. are usually fit), moving this genre away from the more downgrading definitions of ambience or elevator music, and Esquivel’s music belongs, indeed, to an outer space dimension. Actually, despite the Mexican origin of the composer, the possibility of Martian blood running in his veins can’t be denied. When one night, after a performance in San Francisco, the owner of a club asked him where he was from, Esquivel replied, with an ironic smile, ‘some people say I’m from Mars.’
You can listen to 3 tracks from the album Other Worlds Other Sounds here.

(Almost) complete discography (including compilations):

Las Tandas de Esquivel, RCA Victor, 1956 (Mexico) MKL 2001
Actual!, RCA Victor (Mexico) MKL-1710
To Love Again, RCA Victor, 1957, LPM-1345
Other Worlds, Other Sounds, RCA Victor, 1958, LSP-1753
Four Corners of the World, RCA Victor, 1958, LSP-1749
Exploring New Sounds in Hi-Fi, RCA Victor, 1959, LPM-1978 ("In Stereo" on LSP-1978)
Strings Aflame, RCA Victor, 1959, LSP-1988
(with the Ames Brothers) Hello Amigos, RCA Victor, 1960, LSP-2100
Infinity in Sound, RCA Victor, 1960, LSP-2225
Infinity in Sound, Vol. 2, RCA Victor, 1961, LSP-2296
Latin-esque, RCA Victor, 1962, LSA-2418
as Living Strings, In A Mellow Mood, RCA Camden CAL/CAS-709
More of Other Worlds and Other Sounds, Reprise, 1962, RS-6046
The Best of Esquivel, RCA Victor LSP-3502
The Genius of Esquivel, RCA Victor, 1967, LSP-3697
Burbujas, (?)1978 (Mexico) themes from children's TV puppet show "Burbujas"
Odisea Burbujas, same as above
Space Age Bachelor Pad Music, Bar/None, 1994, CD
Cabaret Manana, RCA/BMG. 1995, CD
Music from a Sparkling Planet, Bar/None, 1995, CD
Exploring New Sounds in Stereo/Strings Aflame, Bar/None, 1997, CD
Other Worlds, Other Sounds/Four Corners of the World, Bar/None, 1997, CD
Infinity in Sound, Vols. 1 & 2, Bar/None, 1997, CD
Merry Xmas From The Space-Age Bachelor Pad, Bar/None, 1996, CD
See It in Sound!, BMG/Buddah CD, 1999, CD
Loungecore, BMG Camden, 1999, CD

Quando o futebol se cruza com a filosofia... à séria * When football meets philosophy... for real


Com um line-up destes, os filósofos do futebol que povoam o espaço televisivo nestes dias de Mundial que se cuidem...
With such a line-up, the philosophers of soccer that pack the TV screen in these days of World Cup would better watch out...

18 June 2006

Um cordeiro com pele de lobo * A lamb in wolf's clothing

O VW Karmann-Ghia não é um automóvel desportivo. As linhas fluidas e o design aerodinâmico, juntamente com o facto de se tratar de um coupé 2+2, escondem a mecânica simples dos motores refrigrerados a ar do... carocha! Este modelo da VW nasceu a partir de um concept car desenhado em 1952 pelo americano Virgil Exner e construído pela Carozzeria Ghia para a Chrysler, que viria a ser adaptado pela Karmann para a VW.
O Karmann-Ghia coupé (conhecido como Type 14) foi produzido sem grandes alterações estéticas entre 1955 e 1974 (340 000 unidades montadas na Alemanha), e em 1957 iniciou-se a comercialização do Type 14 cabrio (81 000 unidades alemãs). Entre 1961 e 1969 a VW tentou "modernizar" o conceito do Karmann-Ghia, lançando - em paralelo com o Type 14 - o Type 34, um modelo com linhas mais quadradas e angulosas, que não teve grande sucesso de vendas (foram produzidos menos de 43 000). No Brasil, para além de uma produção considerável de coupés e cabrios Type 14, surgiu também em 1970 (e até 1975) a versão "fastback" Type TC (touring coupé), com linhas baseadas no design do Porsche 911. Deste modelo foram produzidas pouco mais de 18 000 unidades.
Os dois principais atractivos que fazem deste clássico um modelo tremendamente popular são precisamente a conjugação de um design único que não deixa ninguém indiferente com uma mecânica de fácil - e barata - manutenção, graças às semelhanças com o primo utilitário VW carocha. Se por um lado, não é muito fácil encontrar no mercado português algumas peças exclusivas do Karmann-Ghia (apesar de existirem bastantes clubes e dealers especializados, quer online, quer em muitos países europeus), por outro, todos os componentes mecânicos comuns com o carocha estão ao alcance de um qualquer sucateiro.
É apenas de lamentar o facto de o Karmann-Ghia ser um alvo muito apetecível dos fãs do tuning, que impiedosamente desvirtuam as qualidades estéticas deste modelo que, dada a progressiva escassez de exemplares intactos, aumenta a sua cotação no mercado de clássicos a um ritmo galopante.

The VW Karmann-Ghia is not a sports car. The fluid lines and aerodynamic design, together with the fact that it is a 2+2 coupe, hide the plain mechanics of the air-cooled engines of the... beetle! This VW model was born from a concept car designed in 1952 by the American Virgil Exner and built by Carrozzeria Ghia for Chrysler, which would be adapted by Karmann for VW.
The Karmann-Ghia coupe (known as Type 14) was produced without major aesthetic changes from 1955 to 1974 (340 000 units assembled in Germany), and in 1957 the selling of the Type 14 convertible kicked off (81 000 German units). From 1961 to 1969 VW tried to "modernise" the Karmann-Ghia concept, introducing – in parallel with the Type 14 – the Type 34, a model with more squared and angled lines which wasn’t very successful (less than 43 000 units were produced). In Brazil, besides a significant production of Type 14 coupes and convertibles, the fastback version Type TC (touring coupe) also came out in 1970 (and until 1975), with lines based in the design of the Porsche 911. A little more than 18 000 unit of this model were produced.
The two main appeals that make this classic an immensely popular model are precisely the meeting of a unique head-turning design with an easy – and affordable - mechanical maintenance, thanks to the similarities to the utilitarian cousin VW beetle. If, on the one hand, it isn’t very easy to find in the Portuguese market some Karmann-Ghia exclusive parts (although there are many clubs and specialized dealers, both online and in several European countries), on the other hand, all the mechanical components shared with the beetle are at the reach of any junkyard.
The only regret is the fact that the Karmann-Ghia is a very desirable target for tuning fans that mercilessly blemish the visual qualities of this model which, due to the growing shortage of intact specimens, is increasing its value in the classics market at a hasty rate.

photo credits: http://www.karmann-ghia.org/, http://www2.lut.fi/~hosia/ghia.html and http://www.vw-karmann-ghia.de/badura/

15 June 2006

O Sr. Ericsson ligou e deixou recado * Mr. Ericsson has called and left a message

Quando Lars Magnus Ericsson (1846-1926) fundou em 1876 a sua oficina de reparações de telégrafo estava, sem o saber, a criar as fundações de um império de telecomunicações (que há pouco tempo, aliás, se associou a um gigante devorador japonês chamado Sony), hoje materializado nesse pequeno e inseparável gadget chamado telemóvel. O que pouca gente se lembra, ou mesmo não sabe, é que a L. M. Ericsson atingiu o seu expoente máximo com o aparelho desenvolvido por Gösta Thames, Hugo Blomberg e Ralph Lysell entre 1940 e 1954 designado Ericofon. Tratava-se de um telefone que se pretendia leve, pequeno e simples de usar, que integrava o microfone, o auscultador e o disco (as teclas viriam mais tarde) numa só peça com um design tão futurista que não era raro vê-lo figurar como adereço de séries de televisão e filmes, sempre em ambientes sofisticados ou até de ficção científica.
O Ericofon sofreu algumas pequenas alterações ao longo dos mais de 30 anos em que se manteve no mercado: a primeira série (hoje designada por old case) começou a ser produzida em 1954. Por volta de 1960 foi introduzida uma 2ª série (new case) com os telefones um pouco mais curtos e com um ângulo mais fechado. Estes telefones acabaram por sofrer uma ligeira alteração na frente do auscultador, corrigindo o ângulo do aparelho em relação ao ouvido para um ângulo semelhante aos da 1ª série. Apesar destas alterações, a forma original e o conceito subjacente ao design mantiveram-se, e em 1976, para comemorar o centenário da empresa, foi lançado o Ericofon 700. Este modelo, com um design mais rectilíneo, acabou por se revelar um fracasso de vendas, tendo hoje interesse apenas para coleccionadores.
Não é muito difícil nem excessivamente caro adquirir um Ericofon, seja em antiquários (os mais vocacionados para objectos dos anos 50/60), seja em lojas online. Acima de tudo, se - tal como eu - não se sente como peixe na água a restaurar e/ou reparar aparelhos telefónicos, é importante ter a certeza que se encontra em bom estado exterior e a funcionar. Vale a pena, penso eu, tê-lo não só como objecto decorativo, mas prescindir de vez em quando da "liberdade" dos sem-fios e dar-lhe um uso normal em casa, como complemento dos aparelhos com funcionalodades mais modernas, pois o Ericofon, ontem como hoje revela-se nas suas mais de 20 cores (do verde-água "Crystal Mint" para os mais arrojados ao bege "Sahara" para os mais discretos) como um telefone divertido para exibir mas também para usar. Eu escolhi o "Mandarin Red" e comprei-o aqui.
When Lars Magnus Ericsson (1846-1926) founded his telegraph repair workshop in 1876, he was, without realising it, creating the ground for a telecommunications empire (which actually merged with a Japanese devouring giant called Sony, a little time ago), today materialised in that small inseparable gadget named mobile phone. The thing is, few people remember, or maybe don’t know, that L. M. Ericsson reached its peak with the device developed by Gösta Thames, Hugo Blomberg and Ralph Lysell between 1940 and 1954 called Ericofon. It was a telephone intended to be light, small and easy to use, which integrated the microphone, the earpiece and the dial (push-buttons would arrive later) in a single piece with a design so futuristic that it could often be seen as a prop in TV series and films, always in sophisticated environments, or even science-fiction.
The Ericofon suffered some minor changes throughout the more than 30 years that it remained in the market: the first series (today designated as old case) started its production in 1954. Around 1960, a second series (new case) was introduced with phones slightly shorter and with a more closed angle. The latter ended up suffering a slight change in the front of the earpiece, which corrected the angle of the device, in relation to the ear, to an angle similar to the old-case models’. Despite these changes, the original shape and the concept underlying the design were kept, and in 1976, to celebrate the company’s centennial, the Ericofon 700 was released. This model, with its more squared shape, ended up as a sales failure, and today is only valuable for collectors.
It isn’t very hard or excessively expensive to purchase an Ericofon, whether it be in antique/vintage shops (those more directed to objects from the 1950s-60s), or in online stores. Above all, if - just like me – you don’t feel very comfortable restoring and/or repairing telephone devices, it is important to make sure that it is in external good condition and working. It is worth, I think, to have it not only as a decorative object, but to renounce, once in a while, the “freedom” of the cordless phones and use it at home, to complement the devices with more modern functions, since the Ericofon, today like yesterday, reveals itself in its more than 20 colours (from the "Crystal Mint" green for the boldest, to the "Sahara" beige for the more discreet) as a telephone that is great fun both to exhibit and to use. I’ve chosen the "Mandarin Red" and bought it here.

13 June 2006

Romance em vinil de 12 polegadas * A 12-inch vinyl novel


Qualquer melómano que tenha passado por Londres há alguns anos - décadas (!) - atrás, quando o vinil e a fita magnética ainda reinavam como suportes musicais, não pode ter passado ao lado das famosas lojas de music exchange, onde se podia comprar, vender e trocar discos a preços que permitiam pequenas extravagâncias ou encontrar aquela edição de colecção que perseguíamos há anos. Praticamente todas elas tinham um ambiente sombrio, desarrumado e sujo, e eram geralmente iluminadas por lâmpadas fluorescentes que ajudavam ainda mais a criar uma atmosfera que faria o consumidor da high street que lá entrasse por engano sair logo a correr julgando ter encontrado uma entrada para um submundo de criaturas subterrâneas. Pelo contrário, o cliente habitual sentia-se lá confortável era capaz de ficar horas a vasculhar todas as filas e caixas empoeiradas de álbuns à espera de encontrar aquela raridade que faria valer o tempo perdido e as doenças respiratórias provocadas pelos exércitos de ácaros inalados em cada fôlego - nada disso importava nesta procura do santo graal de 12 polegadas. Este é precisamente o cenário de High Fidelity, o best-seller de Nick Hornby.
High Fidelity - Alta Fidelidade na tradução portuguesa - acompanha as desventuras emocionais do obsessivo Rob Fleming, proprietário de uma loja de discos independente e marginal, em tudo semelhante às que descrevi atrás, que questiona as suas relações passadas para tentar compreender o que correu mal. Rob organiza compulsivamente tudo à sua volta em tops de 5 favoritos. É esta a estrutura em redor da qual se desenvolve a narrativa, em particular no que diz respeito ao "top 5" das separações de namoradas.
O romance de Hornby é, em simultâneo, extremamente hilariante e assustadoramente realista nas descrições das frustrações e traumas que perseguem Rob desde a sua infância. Qualquer homem é capaz de se rever na infância e adolescência do protagonista, o que cria imediatamente - pelo menos nos leitores masculinos - uma ligação com a personagem que faz desculpar-lhe o egoismo, as traições e as idiotices que vai perpetrando ao longo da história. Rob é o idiota que sabe que o é, admite-o e tortura-se com isso à medida que se apercebe que não há redenção.
Tal como praticamente toda a narrativa de Hornby, este romance está eficazmente construído para provocar o riso (atenção se lerem em locais públicos) e por isso, se não valer para mais nada (não é o meu caso), High Fidelity vale para os Robs deste mundo descobrirem que não faz mal rirem-se de si próprios, pois essa extensão é um efeito secundário muito provável.
Any music lover who has been to London some years – decades (!) – ago, back when vinyl and magnetic tape still ruled as musical media, can’t have missed the famous music exchange stores, where you could buy, sell and exchange records at prices that allowed you little extravagances or to find that same collector’s edition you’d been chasing for years. They usually exhibited a murky, dismal, untidy quality, and were generally lit by fluorescent tubes which helped even further create an environment that would make the occasional distracted high street shopper run away from it, suspecting they’d found an entrance to an underworld where subterranean creatures lurked. On the contrary, the usual customer would feel very comfortable there, and would be capable of spending hours exploring through all the album rows and dusty boxes hoping to find the rarity that would make up for the wasted time and the respiratory diseases caused by the armies of dust mites inhaled with every breath – none of that mattered in this search for the 12-inch holy grail. This is precisely the setting of High Fidelity, Nick Hornby’s bestseller.

In High Fidelity we move along the emotional distresses of obsessive Rob Fleming, the owner of an independent record store similar to those described above, who questions his past relationships trying to understand what went wrong. Rob compulsively organises everything around him in top 5 favourites, and this is the structure around which the narrative revolves, particularly concerning the top 5 break-ups.
Hornby’s novel is, at the same time, extremely hilarious and frighteningly realistic in the descriptions of the frustrations and traumas that haunt Rob since his childhood. Any man can see himself reflected in the childhood and adolescence of this persona, which establishes right away – at least for male readers – a bond with the character that makes us forgive him the selfishness, betrayals and foolishness he perpetuates throughout the story. Rob is a fool and he knows it, acknowledges it and tortures himself with it, as he realises there is no redemption.
Just like in most of Hornby’s narrative, this novel is effectively shaped to trigger laughter (mind if you read in public places) and therefore, if it’s not worth for more (not my opinion), High Fidelity is worth for the Robs in this world to find out that it’s OK to laugh at themselves, for that extension is a very likely side effect.

12 June 2006

Quem é que disse "Beam me up, Scotty"? * Who said "Beam me up, Scotty"?


"Beam me up, Scotty" é a frase da série televisiva Star Trek que William Shatner, o Capitão James T. Kirk da nave Enterprise, nunca disse a Montgomery Scott, o tenente-coronel com sotaque escocês. Aliás, Scotty nunca irá ouvi-la, pois o actor James Doohan que durante anos encarnou a personagem (e continuará a fazê-lo, como previu o seu dentista: Jimmy, you're going to be Scotty long after you're dead. If I were you, I'd go with the flow.) morreu o ano passado de pneumonia e Alzheimer.
Isso não quer dizer que William Shatner esgote aqui o seu talento para pronunciar frases marcantes com uma compostura que não trai a sua insegurança artística, insegurança essa tantas vezes criticada a par com a sua arrogância e egocentrismo. Como afirmou o falecido Doohan, I like Captain Kirk, but I sure don't like Bill. He's so insecure that all he can think about is himself. E, de facto, se passarmos os olhos por algumas das sentenças que Shatner foi proferindo em diversas entrevistas, talkshows e afins, sentimo-nos traídos ao descobrir que o imortal Capitão que idolatrámos em tempos se tornou vulnerável à chacota e ao ridículo. Vejamos algumas destas pérolas:
For commercial reasons, we stayed away from advancing the theory of God.
I enjoyed reading all the classic authors like Isaac Asimov and Bradbury.
I think of doing a series as very hard work. But then I've talked to coal miners, and that's really hard work.
Há, no entanto, alguma dignidade no ridículo, e a noção de que quem é palhaço o é por opção. É o próprio Shatner que o diz:
If you make a fool of yourself, you can do it with dignity, without taking your pants down. And if you do take your pants down, you can still do it with dignity.
O tipo de comentários que hoje ouço sobre Shatner é sempre em tom paternalista e de piedade com uma pancadinha amiga nas costas, do tipo pois é, já teve o seu tempo e admiro-o por isso, mas agora o melhor é fechar a boca. Pois bem, Shatner não fechou a boca (e a meu ver, fez muito bem) e em Outubro de 2004 lançou o CD Has Been. Em 1968, Shatner tivera já uma primeira experiência para demonstrar o talento vocal, intitulada The Transformed Man, em que os críticos ficaram sem saber se Shatner estaria descontraidamente a divertir-se (será isto o tal baixar as calças com dignidade?) ou se estaria a cair na situação embaraçosa de ostentar uma pose intelectualmente séria (até Hamlet faz uma aparição no álbum) num contexto que é afinal cómico. Shatner justifica o facto de o disco não atingir um estatuto mais mainstream na época explicando: The Transformed Man - good, bad or indifferent - didn't work because the cuts were too long. Apesar de tudo isso - ou talvez por causa disso - tornou-se num álbum de culto para a legião de fãs.
36 anos depois, Has Been não confirma nem desmente o muito que já se falou sobre o talento vocal ou a excelência artística de Shatner. Não há dúvida que deixa no fim o mesmo sentimento de estranheza que o seu antecessor The Transformed Man, mas o facto é que o resultado final, ao contrário deste, é sólido e coeso. Claro que não é alheio a isto o facto de Shatner se ter rodeado de talentos realmente comprovados. Ben Folds, Brad Paisley, Aimee Mann, Joe Jackson, Henry Rollins (!), entre outros, compõem uma ficha técnica de antologia. O álbum abre com a cover de Common People, dos Pulp (o único tema do álbum que assume abertamente uma raíz mais pop) e Shatner, com o apoio vocal de Joe Jackson oferece-nos uma leitura vigorosa do tema que não deve ter desagradado a Jarvis Cocker, apesar do coro infantil. O registo vocal - neste e nos outros temas - é sempre mais spoken word que composição melódica, e quem já ouviu Shatner cantar sabe que essa é a opção mais sábia. A nível musical, não há qualquer pretensão ou aspiração a um estatuto mais enigmático ou bizarro (como acontecia com The Transformed Man, mas não podemos esquecer que em 1968 o psicadelismo estava em plena força) e as abordagens são claramente influenciadas pela música tradicional americana, blues, jazz e rock.
Quer queiramos, quer não, William Shatner conquistou à sua maneira um lugar na cultura popular da segunda metade do século XX, e já no século XXI mostra-nos, com a ironia patente no título do CD, que ainda mexe e que não assume o estatuto de ultrapassado e decadente. Não seria possível baixar as calças com mais dignidade.
"Beam me up, Scotty" is the line from the TV series Star Trek that William Shatner, Captain James T. Kirk of Starship Enterprise, has never said to Montgomery Scott, the lieutenant commander with Scottish accent. Actually, Scotty will never hear that, since the actor James Doohan, who incarnated the character for years (and will keep doing it, as his dentist had predicted: Jimmy, you're going to be Scotty long after you're dead. If I were you, I'd go with the flow.) died last year of pneumonia and Alzheimer.
That doesn’t mean that William Shatner has run out of talent to pronounce striking remarks with a composure that never betrays his artistic insecurity, which has been so many times criticised along with his arrogance and selfishness. As the late Doohan said, I like Captain Kirk, but I sure don't like Bill. He's so insecure that all he can think about is himself. In fact, if we browse through some of the sentences that Shatner has said in several interviews, talk shows and the like, we feel betrayed by discovering that the immortal Captain whom we once idolised has become vulnerable to laughing stock and ridicule. Let’s see some of these treasures:
For commercial reasons, we stayed away from advancing the theory of God.
I enjoyed reading all the classic authors like Isaac Asimov and Bradbury.
I think of doing a series as very hard work. But then I've talked to coal miners, and that's really hard work.
There is, nevertheless, some dignity in ridicule, and the notion that he who’s a clown, chooses to be one. It’s Shatner himself who says so:
If you make a fool of yourself, you can do it with dignity, without taking your pants down. And if you do take your pants down, you can still do it with dignity.
The kind of remarks I hear today about Shatner are always patronising and pitiful, the kind of pat in the back, like, yeah, he’s over the hill now and I admire him for what he did once, but now he’d better shut his mouth. Well, Shatner hasn’t shut his mouth (fortunately, from my point of view) and in October 2004 released the Has Been CD. In 1968, Shatner had already had a first experience to show his vocal talent, entitled The Transformed Man, on which the critics couldn’t decide whether Shatner was just relaxing and enjoying himself (could this be the so-called taking down the pants with dignity?) or falling into the embarrassing situation of grasping an intellectually serious posture (even Hamlet makes an appearance in the album) in a context that was, after all, tongue-in-cheek. Shatner justifies the fact that the record didn’t reach a mainstream status at the time explaining: The Transformed Man - good, bad or indifferent - didn't work because the cuts were too long. In spite of all that – or maybe because of that – it has become a cult album for the legion of fans.
36 years later, Has Been neither confirms nor denies all that has been talked about Shatner’s vocal talent or artistic excellence. It undoubtedly leaves in the end the same feeling of strangeness as its predecessor The Transformed Man, but the fact is that, unlike that one, the final result is solid and coherent. Of course, the fact that Shatner surrounded himself with truly proven talents helps significantly. Ben Folds, Brad Paisley, Aimee Mann, Joe Jackson, Henry Rollins (!), among others, make up an anthological credit list. The album opens with the cover of Pulp’s Common People, (the only song that assumes more openly a pop foundation) and Shatner, with the vocal support of Joe Jackson, offers a vigorous reading of the song that might have gratified Jarvis Cocker, in spite of the children’s chorus. The vocal range – in this song and in all the others – is always more spoken word than melodic composition, and if you’ve heard Shatner sing you know that’s the wisest option. Musically speaking, there is no pretence or aspiration to a more unfathomable or bizarre status (as it happened with The Transformed Man, but we mustn’t forget that in 1968 psychedelia was at its peak) and the approaches are clearly influenced by American traditional music, blues, jazz and rock.
Whether we want it or not, William Shatner has conquered his own way a place in popular culture in the second half of the 20th century, and in the 21st century he shows us, with the irony offered by the CD title, that he’s still shaking and doesn’t assume the status of a decadent has been. It wouldn’t be possible to take down the pants with more dignity.

11 June 2006

O homem que se chamava pistola * The man with a gun on his name


Peter Gunn revelou-se, logo desde o início da sua transmissão, em 1958, uma série televisiva notável, devido a um vasto conjunto de factores que a destacaram da mediania de outros produtos televisivos congéneres. Refiro-me à produção de Blake Edwards, à participação de Robert Altman como realizador de vários episódios, ao desempenho sempre cool de Craig Stevens e, claro está, ao inesquecível Peter Gunn Theme de Henry Mancini que inebriou várias gerações e deu origem à colaboração do lendário guitarrista Duane Eddy com os Art of Noise na cover que se tornou um hit do álbum de 1986 In Visible Silence. Para (re)ver e ouvir calmamente, graças à edição da série completa em DVD.
Peter Gunn turned out to be, right from the beginning of its broadcast in 1958, a remarkable TV series, due to a great number of factors that made it stand out from the ordinariness of other similar TV products. Of course I mean Blake Edwards’ production, Robert Altman’s contribution as director of several episodes, the ever-cool Craig Stevens’ performance and, of course, Henry Mancini’s unforgettable Peter Gunn Theme which has inebriated several generations and brought about the collaboration of the legendary guitarist Duane Eddy with the Art of Noise in the cover that became the 1986 hit from album In Visible Silence. Now you can placidly enjoy watching (again) and listening to it, thanks to the edition of the complete series on DVD.